Homenagem da Academia Maranhense de Cultura Jurídica, Social e Política ao ensejo do bicentenário de Gonçalves Dias!
Por Sergio Victor Tamer
Um dos pontos incontroversos que encontramos na crítica sobre Gonçalves Dias é a perfeita, intensa e íntima brasilidade de sua obra poética, conforme farta conceituação que escritores e críticos literários vem fazendo nestes últimos dois séculos de sua história. E nesse passo, a respeito do notável Patrono de nossa Academia, disse o professor da Sorbonne, George Le Gentil, ser ele “o verdadeiro fundador da poesia brasileira.” Opinião compartilhada por Gonçalves Crespo que o tem como “o criador da poesia nacional e o entusiasta cantor das epopeias brasileiras.” Edison Lins também reconhece, na sua “História e crítica da poesia brasileira”, que “com o mestiço Gonçalves Dias, o Brasil teria o seu primeiro e genuíno poeta”. E pela voz autorizada de Bilac, “Gonçalves Dias foi aquele que mais brasileiramente pensou, sentiu e escreveu.”
A todas essas assertivas junta-se, de forma ainda mais contundente, a apreciação que faz Nogueira da Silva ao garantir que essa íntima e cívica brasilidade fez dele “o grande, o imortal, o máximo poeta da raça”, conceito que não difere daquele feito por Alexandre Herculano que ao ler “Os Primeiros Cantos” sublinhou, “como exemplo da verdadeira poesia nacional do Brasil” os poemas “Canto do Guerreiro” e um fragmento do “Morro do Alecrim”.
Mas nesse ilustrado rol de referências a Gonçalves Dias, não poderíamos deixar de destacar Machado de Assis, um dos nossos maiores, se não o maior, no realismo brasileiro, que segundo Montello “não era pródigo em louvores”, porém predisse que os versos gonçalvinos eram perpétuos e que “serão repetidos enquanto a língua que falamos for a língua de nossos destinos”. É voz uníssona, assim, dentre os mais expressivos nomes da literatura e da crítica literária, que Gonçalves Dias canta o nascimento de um Brasil autônomo, política e literariamente. Situa-se esteticamente entre a era Colonial e a era Nacional. Foi um rico momento de autoafirmação nacional que iria marcar esse primeiro momento do Romantismo brasileiro.
Gonçalves Dias, retratado pelo pintor francês Louis Alex Boulanger
DO SÍTIO BOAVISTA PARA A IMORTALIDADE
A vida e a obra de Antônio Gonçalves Dias, por todo o seu exuberante conteúdo humano e literário são inesgotáveis e, por isso mesmo, imorredouras! E jamais uma breve crônica, como essa, ao ensejo do seu ducentésimo aniversário de nascimento, poderia abarcar, mesmo com extremada síntese, toda a sua significante extensão. Mas é inevitável que a comemoração do aniversário de nascimento de Antônio Gonçalves Dias, como hoje aqui fazemos, nos remeta às terras da Fazenda Jatobá, sítio Boavista, antiga Vila de Caxias, onde nasceu dez dias depois da entrada das forças independentes naquele solo, ao mando do capitão-mor Filgueiras. Eram os albores da adesão maranhense à Independência do Brasil. Seu pai, o comerciante português João Manuel Gonçalves Dias, simpatizante da causa defendida pelo sargento-mor Fidié a favor dos portugueses, teve de foragir-se, embarcando logo em seguida para Portugal só retornando algum tempo depois. O menino passa, então, os dois primeiros anos em companhia de sua mãe. De volta a Caxias, seu pai casa com Adelaide Ramos de Almeida e o pequeno Antônio vai com eles morar, acolhido com benevolência. Inicia, nessa fase, o curso primário ministrado pelo professor José Joaquim de Abreu. A sua precocidade, aos dez anos, leva o pai a tê-lo como ajudante no comércio. Mas por solicitação de parentes e amigos, que já vislumbravam suas singulares disposições para as letras, foi mandado à aula do professor Ricardo Leão Sabino quando então iniciou seus estudos, embora incipientes, de latim, francês e filosofia.
A PRIMEIRA AMARGA VIAGEM AO VELHO CONTINENTE
Sua chegada em São Luís na companhia do pai João Manuel deu-se em 1837, aos 14 anos. Porém, a morte do genitor faz com que ele regresse a Caxias para só viajar a Coimbra no ano seguinte, a 13 de maio de 1838, desta feita sob as expensas de D. Adelaide, sua madrasta. Mas advindo situação econômica adversa em face da Balaiada, pede ela o retorno de Gonçalves Dias a São Luís que, no entanto, permanece em Portugal graças à ajuda de amigos. Finalmente, dois anos após a sua chegada em terras lusas, em outubro de 1840, aos 17 anos, matricula-se na Universidade. Foram momentos difíceis e amargurados ali vividos, conforme relatou em carta ao seu amigo Carvalho Leal: “Triste foi a minha vida de Coimbra, que é triste viver fora da pátria, subir degraus alheios, e por esmola sentar-se à mesa estranha. Essa mesa era de bons e fiéis amigos, embora! O pão era alheio, era o pão da piedade, era a sorte do mendigo”.
É dessa época o poema Canção do Exílio, datado de julho de 1843, quando ele tinha somente 20 anos, assim como o poema Saudades, que dedica à sua irmã, em que descreve a dor da sua partida:
Parti, dizendo adeus à minha infância, Aos sítios que eu amei, aos rostos caros Que eu já no berço conheci – aqueles De quem mau grado a ausência, o tempo, a morte E a incerteza cruel do meu destino, Não me posso lembrar sem ter saudades...
O MARCO DO ROMANTISMO BRASILEIRO
Em 1845 retorna a Caxias já formado em Direito, mas não se adapta ao torrão natal. Após um ano de incompreensões e calúnia por conta “de seus modos galantes aprendidos na Europa”, segue para o Rio, em 1846, quando publica o seu primeiro livro de versos, sob o título de Primeiros Cantos. Contava ele com 23 anos de idade. Em seu prólogo, fala do contexto de suas composições ao afirmar que elas “não têm uma unidade de pensamento entre si, porque foram compostas em épocas diversas – debaixo de céu diverso – e sob a influência de impressões momentâneas. Foram compostas nas margens viçosas do Mondego e nos píncaros enegrecidos do Gerez – no Doiro e no Tejo – sobre vagas do Atlântico, e nas florestas virgens da América…” E é ainda no Prólogo da primeira edição de Primeiros cantos que Gonçalves Dias, com extraordinária beleza e enlevo d´alma, define e traduz, dizendo não poder fazê-lo, o que é Poesia: “Casar assim o pensamento com o sentimento – o coração com o entendimento – a ideia com a paixão – colorir tudo isto com a imaginação, fundir tudo isto com a vida e com a natureza, purificar tudo com o sentimento da religião e da divindade, eis a Poesia – a Poesia grande e santa – a Poesia como eu a compreendo sem a poder definir, como eu a sinto sem a poder traduzir”…
Essa obra iria consolidar o Romantismo brasileiro e merecer, de Alexandre Herculano, em artigo publicado na Revista Universal Lisbonense, de novembro de 1847, sob o título “Futuro Literário de Portugal e do Brasil”, uma crítica elogiosa em que destaca os poemas “O canto do guerreiro”, “O morro do Alecrim” e “Seus olhos”. Este último poema, em especial, recebe de Herculano uma irresistível menção ao dizer que das composições líricas, “Seus olhos” é uma “das mais mimosas que tem lido na vida”. Gonçalves Dias a teria escrito para a então menina Ana Amélia assim que a conheceu:
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, Assim é que são; Eu amo esses olhos que falam de amores Com tanta paixão.
Josué Montello nos dá conta de que seu velho mestre do Liceu Maranhense, o professor José Ribeiro de Sá Vale, quando ainda “menino e moço, conheceu Ana Amélia, já velhinha, e dela ouviu, mais de uma vez, este suspiro de orgulho:
- Meu filho, eu fui amada pelo maior poeta do Brasil!”
HOMEM DE LETRAS E DE CIÊNCIAS
Nomeado para a Secretaria dos Negócios Estrangeiros, permaneceu na Europa de 1854 a 1858, em missão oficial de estudos e pesquisa. Nesse período, na Alemanha, o livreiro-editor Brockhaus editou os Cantos, os primeiros quatro cantos de “Os Timbiras”, compostos dez anos antes, e o Dicionário da língua Tupi. De retorno ao Brasil, entre 1861 e 1862, viajou pela Amazônia, pelos rios Madeira e Negro, como membro da Comissão Científica de Exploração. Montello observou, na introdução que faz à transcrição do “Diário da Viagem ao Rio Negro”, que em Gonçalves Dias houve a conciliação do homem de letras com o homem de ciências. E que a ele coube, na Comissão, uma dupla atribuição: chefiar os estudos etnográficos e redigir a narrativa da viagem, objeto de esmerada transcrição feita por Lúcia Miguel Pereira.
AS ÚLTIMAS VIAGENS
Seguindo para a Europa no dia 20 de abril de 1862, a bordo do brigue francês Grand Condé, buscando estações de cura em várias cidades europeias, Gonçalves Dias faria a sua derradeira viagem ao Velho Mundo. O seu retorno à Pátria, já com a saúde bastante abalada, se dá em 10 de setembro 1864, aos 41 anos de idade, quando embarca de regresso ao Maranhão, no navio Ville de Boulogne, para fazer a sua viagem definitiva e fatídica. O embarque se deu em Havre, uma cidade portuária da Alta Normandia, à noroeste da França, situada no estuário do rio Sena. Foram quase dois meses de viagem até o célebre naufrágio nos baixios dos Atins, perto da Vila de Guimarães, na costa maranhense, em 3 de novembro do mesmo ano, fendendo-se ao meio a embarcação. Para uns, a exemplo da notícia que à época saiu no Correio Mercantil do Rio de Janeiro, a tripulação o abandonou, deixando-o cerrado em seu camarote onde estava sem forças para levantar-se; em outra notícia estampada no Jornal do Recife, dá-se conta que um mastro da embarcação teria caído sobre o camarote onde repousava o seu debilitado e enfermo corpo; há, ainda, uma terceira versão, que teria sido passada pelos tripulantes, qual seja, a de que Gonçalves Dias faleceu no instante em que o navio encalhou nos baixios dos Atins…
No poema “Adeus”, que dedica “Aos meus amigos do Maranhão” – e que integra os Primeiros cantos -, Gonçalves Dias, em tom premonitório, parece ver o seu fim cerca de 18 anos antes daquele infausto ocorrido:
Do naufrágio da vida há de arrojar-me À praia tão querida, que ora deixo, Tal parte o desterrado: um dia as vagas Hão de os seus restos rejeitar na praia, Donde tão novo se partira, e onde Procura a cinza fria achar jazigo.
O POETA DA BRASILIDADE
Pátria, mulher e natureza foram os elementos constantes e sublimados na obra poética do genial vate maranhense, conforme anotou em acurada análise crítica Maria Antonieta Vilela Raymundo. Inquestionavelmente, foi ele o nosso primeiro poeta lírico, tendo estabelecido os fundamentos de uma poesia brasileira ao romper com os padrões da arcádia lusitana até então vigentes no país.
E ao nosso poeta maior, como patrono oficial da Academia Maranhense de Cultura Jurídica, Social e Política, prestamos hoje, no dia do seu nascimento, e com essas simples palavras, o preito de uma imorredoura gratidão.
Salve 10 de agosto! Salve Antônio Gonçalves Dias!
*SERGIO TAMER é presidente da Academia Maranhense de Cultura Jurídica, Social e Política; membro da Academia Maranhense de Letras Jurídicas; e fundador do CECGP – Centro de Estudos Constitucionais e de Gestão Pública.